Em três dias, a Câmara dos Deputados fez um esforço concentrado que há tempos não se via. Quase 500 parlamentares lotaram o plenário da Casa, travaram intensos mas rápidos debates e, em votações-relâmpago, aprovaram o que a maioria pretendia. O resultado de tanto empenho, no entanto, está longe de ser comemorado pela sociedade. Na primeira investida, foram necessárias apenas quatro horas para lograr um retrocesso de quatro décadas na legislação brasileira — a toque de caixa, aprovaram a PEC da Blindagem, que proíbe a Justiça de investigar e prender parlamentares sem autorização do Congresso. A votação não deixou dúvidas sobre o apoio à proposta: foram 353 votos a favor e 134 contra a medida — o projeto precisa ainda ser aprovado no Senado. No dia seguinte, em nova movimentação frenética no plenário e muita conversa nos bastidores, o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), levou à pauta a votação de um requerimento de urgência para a tramitação de anistia aos envolvidos em atos antidemocráticos entre o fim de 2022 e o início de 2023. Retiraram da gaveta uma proposta qualquer sobre o tema e votaram sem que boa parte sequer conhecesse o texto — mesmo assim, foram 311 votos a favor e 163 contra. Os dois episódios foram consequências diretas do empenho de partidos do Centrão e aliados no centro e à direita, que deram a grande maioria dos votos e mostraram a força que o grupo tem para impor sua agenda no Congresso.

A aprovação da urgência para a anistia, defendida há meses pela ala bolsonarista na Câmara, destravou na base do atropelo. Hugo Motta vinha resistindo aos apelos para pautar qualquer iniciativa que pudesse amenizar ou perdoar as punições impostas pelo Supremo Tribunal Federal, mas a condenação à prisão do ex-presidente Jair Bolsonaro na semana passada tornou a pressão insustentável. Após várias negociações, os deputados convenceram o presidente a colocar na pauta o PL 2 162, de Marcelo Crivella (Republicanos-RJ), que tramitava desde 2023 na Casa, quase no anonimato. O texto concede “anistia aos participantes das manifestações reivindicatórias de motivação política ocorridas entre o dia 30 de outubro de 2022 e o dia de entrada em vigor desta lei”, ou seja, é amplo demais e poderia, em tese, beneficiar até Bolsonaro.
A gambiarra promovida pelos deputados só teve um desfecho perto da meia-noite. Mesmo assim, estavam a postos horas depois para escolher o relator da proposta, Paulinho da Força (Solidariedade-SP). O desafio agora será encontrar um meio-termo que satisfaça aos bolsonaristas — que exigem “anistia ampla, geral e irrestrita”, incluindo o perdão criminal e eleitoral a Bolsonaro — e seja aceito por parte expressiva do Centrão, que defende redução de penas e até anistia aos executores do 8 de Janeiro, mas não a reabilitação total de Bolsonaro. O governo, que reconheceu a extensão da derrota, tentará reduzir danos e impedir que o texto final devolva Bolsonaro ao jogo eleitoral em 2026. Outra preocupação, inclusive de Motta, é não desagradar aos ministros do STF, que podem declarar inconstitucional a inciativa a depender do que for aprovado.

A votação se deu sob um clima de muita tensão. Enquanto a esquerda lembrava os crimes cometidos pelo ex-presidente e seus aliados, os bolsonaristas recorriam a personagens como a cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos, conhecida por ter pichado com um batom a estátua do STF e condenada a catorze anos de prisão. “A anistia para ‘Débora do batom’, para as pessoas injustiçadas, é clara, inclusive para nosso presidente Bolsonaro”, disse Luciano Zucco (PL-RS), líder da oposição. “O voto pela anistia é por brasileiros que foram injustiçados, pelo velhinho, pela velhinha que choraram pela prisão do presidente Bolsonaro”, fez coro Luiz Lima (Novo-RJ). “Anistia, em sua etimologia, significa esquecimento. E uma coisa que a gente não pode esquecer é que no dia 8 de janeiro houve uma tentativa de golpe no Brasil”, rebateu Duda Salabert (PDT-MG). Ao final, um Hugo Motta tentou sinalizar para a paz. “Um presidente da Câmara não pode ser dono de teses nem de verdades absolutas. Sempre que alguém se declarou dono da verdade, o país perdeu. E, nesse caminho de construção coletiva, o Brasil precisa de pacificação”, afirmou.
A anistia aos envolvidos nas conspirações antidemocráticas não tem apoio majoritário da população. Pesquisa Genial/Quaest divulgada na última semana mostra que 41% são contrários a qualquer iniciativa nesse sentido e apenas 36% defendem o perdão para todos, inclusive Bolsonaro — outros 10% apoiam a concessão do benefício apenas aos envolvidos no 8 de Janeiro. Os deputados, no entanto, não pareceram preocupados com a repercussão negativa, tanto que emplacaram a anistia logo após a PEC da Blindagem, que também foi amplamente criticada. O grosso do apoio às duas propostas (mais de 200 votos) veio de partidos abrigados no governo, como União Brasil, PP, Republicanos, MDB e PSD. Longe de ser um exagero, a alcunha PEC da Blindagem resume precisamente o que emana do texto: sem o aval do Congresso, a Justiça não poderá abrir investigações sobre deputados e senadores, tampouco decretar medidas cautelares ou prisões, exceto em flagrante por crime inafiançável. Também foi dado foro privilegiado a presidentes de partidos, mesmo que não tenham mandato. O relator, Cláudio Cajado (PP-BA), rejeita a pecha de “blindagem”. “Não é um salvo-conduto para crimes, é uma garantia de prerrogativas para que parlamentares não sejam punidos por expressar opinião”, diz.

A autoproteção dos congressistas vem a calhar no momento em que o Supremo se debruça sobre casos de corrupção envolvendo emendas parlamentares — Flávio Dino lidera uma força-tarefa com mais de oitenta inquéritos que apuram irregularidades. Um dia depois da aprovação da PEC, Antonio Rueda, o presidente do União Brasil, teve seu nome envolvido na Operação Carbono Oculto, como o suposto dono de jatos usados em esquema de lavagem de dinheiro da facção criminosa PCC. O cacique negou. “Rueda não vê qualquer motivo para ter sido citado como proprietário das aeronaves mencionadas, o que é falso, e repudia com veemência qualquer tentativa de vincular seu nome a pessoas investigadas ou envolvidas com a prática de algum ilícito”, diz a defesa.

A força do Centrão serve de alerta a Lula. Além do peso do grupo nas eleições de 2026, o bloco exerce amplo domínio sobre a agenda legislativa e é vital para projetos do governo. Um exemplo é a proposta que amplia a isenção do imposto de renda para quem ganha até 5 000 reais por mês, cujo relatório está nas mãos de Arthur Lira (PP-AL). Outro projeto prioritário, a PEC da Segurança tem Mendonça Filho (União Brasil-PE) como relator. “Podemos ter divergências nas visões de mundo, mas o tema está acima de interesses eleitorais e nós buscaremos sempre o consenso da maioria”, diz. O governo não tem como ficar confortável — dos 38 projetos que aprovou no atual mandato, vinte foram relatados por políticos do Centrão (veja o quadro). Desde o governo Dilma Rousseff, cresceu de forma considerável a parcela de projetos aprovados por relatores desse agrupamento em contraposição ao declínio de partidos outrora influentes no Congresso como MDB e PSDB, segundo estudo elaborado pelo Ranking dos Políticos. “As relatorias mostram a real influência do Centrão sobre políticas públicas e a dependência do governo dessas alianças. O eixo de poder mudou nos últimos anos: não basta eleger o presidente da República, é o domínio do Congresso que faz a diferença”, avalia Juan Carlos Arruda, diretor-geral do Ranking dos Políticos.
A crise entre governo e Centrão, que se agravou desde o rompimento da União Progressista com Lula, em 2 de setembro, fez soar os alarmes no Planalto. A relação entre os dois lados, no entanto, é complexa. A despeito da retórica de oposição, União Brasil e PP se alinham ao governo em até 78% das votações — o que mostra quanto ainda são relevantes para a agenda governista. Duas semanas após o anúncio do racha, André Fufuca (PP) e Celso Sabino (União Brasil) seguem ministros do Esporte e do Turismo, respectivamente. Na quinta 18, o União Brasil deu 24 horas para seus filiados deixarem o governo. “Para esses partidos, a situação atual é a melhor possível: podem adotar a retórica de uma posição ou outra, sem mudar a postura em relação ao governo, com as emendas parlamentares e o financiamento de campanha já garantidos”, avalia o cientista político José Álvaro Moisés, da USP. Só no atual governo Lula, os partidos do Centrão abocanharam mais de 17 bilhões de reais do Orçamento, sendo que o campeão é exatamente o conglomerado União Brasil-PP, com 6 bilhões de reais (veja o quadro) — o valor é muito maior do que os orçamentos de Esporte e Turismo, que variam entre 1 e 3 bilhões por ano cada um.

O Congresso brasileiro tem um longo histórico de decisões controversas e de movimentos que visam apenas preservar seus próprios interesses. A movimentação dos últimos dias deu um sinal inequívoco de que, mesmo em meio às necessidades urgentes do país, o Parlamento acha energia para aprovar medidas movidas unicamente pelo espírito de corpo. A reação dos eleitores: Pesquisa Genial/Quaest de agosto mostrou que apenas 45% dos brasileiros confiam no Congresso — a pior avaliação entre os três poderes da República.
Com Veja