Na mesma semana em que o instituto AtlasIntel divulgou uma pesquisa apontando que 63% dos brasileiros consideram a criminalidade o maior problema do país — 20 pontos a mais que em julho —, algumas das cabeças do PT se reuniram no Rio de Janeiro para uma reflexão coletiva de dois dias sobre segurança pública. O documento que servia de base para as discussões, no entanto, feito pela Fundação Perseu Abramo, uma espécie de think tank do partido, tratava de coisas como a desmilitarização da Polícia Militar, o maior controle externo da atividade policial e a flexibilização da lei de drogas, além de trazer fortes críticas às abordagens policiais, consideradas racistas e elitistas, e ao uso ostensivo de câmeras de monitoramento, apontado como deletério ao direito à privacidade. Além da desgastada lacração retórica e da insistência em brigar com a realidade (o uso de tecnologia vem se provando um grande aliado na luta contra o crime), o discurso petista colide com o anseio da sociedade. Como mostram as recentes pesquisas, os brasileiros não suportam mais a insegurança e a impunidade. Por isso, a maioria quer mais pulso firme do Estado e ações concretas no combate aos bandidos.

A quase alienação petista em relação ao momento do país não era obra de um simples burocrata da sigla, mas foi reforçada por caciques históricos da legenda. “A PM é uma tropa de reserva para dar golpe de Estado, já que não conseguiram com as Forças Armadas. É um erro político deixar essa bandeira (da segurança) nas mãos da direita”, disse na abertura o ex-ministro José Dirceu, de novo uma das principais vozes do PT e escolhido para coordenar o programa a ser defendido em 2026. Presidente nacional da sigla, Edinho Silva, também um crítico frequente do uso da força no combate ao crime, apontou que o material debatido era um ponto de partida para dar visibilidade às propostas. “A partir de agora, é preciso construir um plano de ação para traduzir essa formulação em ações práticas”, disse.

A dissonância entre os próprios petistas, no entanto, deu o tom no encontro. Depois de ouvir críticas à megaoperação policial contra o Comando Vermelho que deixou 122 mortos no Rio, o presidente estadual do PT, Diego Zeidan, chamou a ação de “bem-sucedida” e “eficaz“. Seu pai, o vice-presidente nacional do PT e prefeito de Maricá, Washington Quaquá, espalhou de vez o mal-estar. “O Bope só matou ali otários, vagabundos, bandidos”, falou ao microfone, sob protestos de uma petista que gritava “mentira sua”. A VEJA, Quaquá disse que a sigla precisa se abster de “discussões histéricas com bolsonaristas” e admitir a necessidade de força policial para reocupar territórios dominados pelo tráfico. “Essa visão tradicional da esquerda de que o lado social resolve tudo vai ter que ser ajustada”, disse. Quaquá não está sozinho. Governadores dos maiores estados comandados pelo PT, Elmano de Freitas (Ceará) e Jerônimo Rodrigues (Bahia) têm defendido o embate duro contra o crime. Com alguns dos maiores índices de criminalidade do país, esses estados são sempre usados pela direita como exemplos do fracasso da esquerda nas políticas de segurança. Enquanto a sigla aborda a questão do ponto de vista humanista nos seus documentos, a Bahia, que o petismo governa há cinco mandatos, tem a polícia que mais mata no país. “O PT vive uma esquizofrenia entre um campo mais acadêmico, que relativiza a criminalidade e se prende a conceitos obsoletos, e uma ala mais favorável à linha dura, que detém o poder sobre nomeações políticas e a campanha eleitoral”, avalia Rodrigo Azevedo, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Na mesma segunda-feira em que iniciava seu turbulento seminário no Rio, outra reunião sobre o tema ocorria em Brasília. No Palácio do Planalto, o “comitê central” de Lula para a campanha de 2026, formado pelos ministros Gleisi Hoffmann (Relações Institucionais), Fernando Haddad (Fazenda), Rui Costa (Casa Civil) e Sidônio Palmeira (Comunicação Social), se reunia com Ricardo Lewandowski (Justiça) para debater o tema. No início de novembro, Sidônio tentou emplacar o plano “Aliança Contra o Crime pela Paz”, que previa um esforço coordenado para divulgar as ações do governo na área, mas nada disso andou. Ao longo da semana, o foco foi fazer avançar no Congresso a PEC da Segurança, que dá mais musculatura ao poder central, e salvar o PL Antifacção, um dos carros-chefes da gestão e que havia sido bastante modificado pelo relator na Câmara, Guilherme Derrite (PP-SP). O relatório do senador Alessandro Vieira (MDB-SE), apresentado na quarta-feira, retirou várias das mudanças feitas pelos deputados, aproximando o texto ao formato original proposto pelo governo.

A discussão sobre para onde ir em um tema tão fundamental é decisiva para o projeto eleitoral do PT. Uma amostra disso pôde ser vista na terça-feira 2, quando Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo, e Ronaldo Caiado, governador de Goiás, ambos presidenciáveis, usaram espaço cedido por uma comissão da Câmara que discutia a PEC da Segurança para defender o exato oposto do que vem pregando o petismo. Principal aposta da direita, Tarcísio pediu aos parlamentares que rejeitem as propostas da gestão petista e implementem medidas concretas para enfrentar a crise, como penas mais duras aos criminosos, redução da maioridade penal e fim das audiências de custódia em casos envolvendo facções. Caiado acusou o governo federal de tentar enfraquecer as polícias estaduais e tirar autonomia dos outros entes da federação. “Quem manda na segurança pública do meu estado sou eu, o governador”, disse.

A terapia pública e coletiva a que se submete o petismo em relação à segurança pública não será a única. Na sexta-feira 5, o partido fez em Brasília o ato de lançamento do 8º Congresso Nacional do PT, o primeiro desde 2019, quando o país era governado por Jair Bolsonaro e o petismo estava na defensiva, após o impeachment de Dilma Rousseff e a prisão de Lula. O novo congresso, previsto para abril de 2026, “marcará o início de um dos processos políticos mais importantes do partido, responsável por atualizar seu programa, revisar o estatuto, orientar a estratégia eleitoral e contribuir para a construção do próximo programa de governo”, diz a sigla.

Fundado em 1980, amparado no emergente sindicalismo, o partido tem muito o que rever, a começar pelos escândalos do passado recente. Em vez de autocrítica, os petistas tentam reescrever a história, tentando apagar a culpa em casos de corrupção como o do petrolão. Outro foco das preocupações petistas é “enfrentar a nova realidade da classe trabalhadora”, como definiu Edinho, em referência à dificuldade com modalidades emergentes de trabalho, como os motoristas por aplicativos, ou com quem aposta no empreendedorismo. Também estão no pacote a preocupação com redes sociais, a necessidade de reaproximar o PT da militância, a oxigenação da estrutura burocrática e o desafio imposto pelo avanço mundial da direita. Não será uma tarefa fácil para os petistas. Mesmo com o bolsonarismo em momento delicado, a direita e a centro-direita se movimentam nos bastidores para construir uma candidatura forte de oposição a Lula. A maneira errática como o PT vem debatendo e tentando se posicionar em temas centrais, como o da segurança pública, exposta de maneira clara nos últimos dias, aponta para dificuldades no horizonte.






